“Gosto é que nem cu” – já dizia meu
pai – “cada um tem o seu”. Será? Cada um é dono do seu mesmo? Outra vez minha
mãe me pediu a opinião sobre um texto do Rubem Alves que ela leria na reunião
do núcleo gestor lá da escola onde trabalha. O texto falava sobre a felicidade
e a alegria de se ensinar. Disse-lhe que achava o texto muito piegas e ela me
respondeu que Felicidade é uma coisa subjetiva. Pobre de Aristóteles, então,
que dedicou boas linhas de sua Ética a Nicômaco
para tratar da Felicidade (eudaimonia).
Não de sua felicidade, como sujeito,
mas d’A Felicidade. Apesar dos
benefícios que isto provoca, nós modernos estamos condenados ao cogito cartesiano. Estamos condenados a,
no mais, incorrer àquilo que para Kant, no seu Curso de Lógica, é o pior de
todos os equívocos: tratar uma questão subjetiva como objetiva. E assim, quando
percebemos o desastre lógico disso, soltamos um “ei, mas isso é o meu gosto,
a minha opinião, minha visão. Não dá pra discutir isso”.
Pel’amor! quantas discussões boas a
gente não deixa de ter quando trata as coisas dessa maneira?!
Não se pode negar, entretanto, que
é o nosso gosto que nos move a
escolher tal ou tal música para ouvir, a escolher aquele e esse filme para
assistir, em detrimento de tantos outros filmes e músicas que poderíamos ter
escolhido. Isso faz parte da própria forma como nos acostumamos, de uns tempos
pra cá, a agir no mundo. A internet facilita muito isso. Não preciso mais
esperar que o filme ou a novela que passa na televisão me agrade, não fico mais
restrito ao acervo da locadora do meu bairro, nem àqueles CDs que meu salário
me permite comprar nem aos que a loja de discos me disponibiliza. Posso escolher
na internet (e, a posteriori, de
graça!) aquele material que diz mais respeito a mim, que me permite trabalhar
melhor a minha subjetividade.
Entretanto, eu entendo que a
apreciação da Arte é subjetiva somente no que diz respeito à sua recepção. Agora,
a obra de arte em si (o quadro, a escultura, a música, o livro) e a estrutura
de signos que a subjaz são completamente objetivas. Isso é o que permitiu a
Domício Proença Filho a chamar o texto literário de objeto estético [1]. Daqui
a pouco explico o que quis dizer com recepção.
Não podemos negar também que,
concretamente, quando sofro uma catarse, sou eu que sofro, são os meus
sentidos e minha inteligência que
são provocados, e não O Gosto, ou A Arte ou O Belo que, à moda de uma entidade
supranatural, descem de sua morada celeste para me dar um abraço e verter
minhas lágrimas ou gargalhar comigo. Mas, não seria o caso de pensarmos também
que aquela obra de arte que me comoveu assim o fez porque está de tal modo
estruturada que, quando percebida, toca aquilo que há de comum entre o eu e o
nós? Ou pior! que naquela obra de arte que tanto me comoveu pode não haver nada
de geral e comum, e pode muito bem ser que ela não comova mais ninguém porque
ela é ruim demais para fazer isso?
Ora, mas isso faz de mim uma pessoa
de mau-gosto estético? Certamente não. Ninguém é chamado de alcoólatra só
porque resolveu tomar algumas taças de vinho no ano novo, assim como ninguém
irá passar a ter mau-gosto só porque chorou ouvindo Waldick Soriano enquanto se
embriagava. Por outro lado, se comover com uma obra de arte de péssima
qualidade faz de mim uma pessoa burra
ou sem inteligência instrumental, como já vi muita gente dizer? Pior!
Definitivamente não!
Primeiramente porque, para ser
apreciada, a obra de arte passa, antes
de tudo, pelos sentidos, e aqui
vem a questão da recepção da obra, da qual falei acima. Sentidos aqui tomados numa dupla acepção. Tanto na sua significação
fisiológica (o sentido da visão, da audição), sendo portanto sensação, como no
significado cognitivo do termo, sendo sentido
propriamente dito. Nessa última significação, não se leva em conta noções
puramente empíricas ou cientificistas, mas antes metafísicas. Diz respeito a
uma certa sensibilidade intelectual,
que não abarca aspectos simplesmente lógicos da inteligência, mas intuitivos.
Assim, como dito antes, para a obra de arte ser apreciada ela deve passar
primeiramente pelos sentidos. Para sermos provocados por um quadro de Dali ou
por um desenho do Batman, é necessário que eles se apresentem à nossa visão.
Para sermos provocados por uma tocada de Bach ou por uma canção do Thiaguinho –
ex-Exaltasamba – as músicas nos devem ser dadas na audição. Ora, para ver e
ouvir não é necessário um denso esforço da inteligência, se a entendemos como a
agilidade de raciocínio e a capacidade de pensar de forma lógica e formal. Para
ver e ouvir, basta ter olhos e ouvidos. E só. Portanto, num primeiro momento,
bom gosto estético não é sinal de inteligência, se tomarmos esse termo naquele
sentido estrito, mas pode, certamente, ser sinal de sensibilidade intelectual.
O segundo motivo pelo qual o bom
gosto estético não é sinal de inteligência diz muito respeito ao primeiro.
Entendemos que, para nos provocar, uma obra de arte deve passar primeiro pelos
sentidos, depois pela sensibilidade intelectual e apenas ocasionalmente pela razão
instrumental. Para ter uma boa apreciação de toda A Arte da Fuga de Bach eu não preciso ter noções de contraponto,
basta receber a execução da música pelos sentidos e intuir com minha sensibilidade sua ordem melódica. Entretanto, ter
noções de contraponto permitir-me-á ter uma noção mais clara da estrutura
daquela obra, tornando possível descobrir nuanças que não captaria puramente
com meus sentidos e, assim, tendo descoberto algo de encoberto na obra,
provoca-los mais intensamente. Mas reparem como sempre estamos jogando com os
sentidos, e não somente com a inteligência.
Saber contraponto e teoria musical
é um saber técnico, que envolve a
razão instrumental, ou seja, a inteligência no sentido estrito. Agora, saber
curtir Bach ou Thiaguinho envolve gosto.
Por último, gostaria de dizer que,
se pensarmos de maneira concreta, uma música, um filme, um livro ou uma pintura
a óleo são coisas que estão fora de nós que a vemos. Não são, portanto,
sujeitos. Para existir como conceito, dessa forma, a Arte precisa utilizar como
substrato objetos os quais definamos como “obras de arte”. O problema disso
surge justamente quando a gente levanta a seguinte questão: “mas quem ou o que define,
afinal, esse mesmo substrato. Quem ou o que define o que é uma ‘obra de arte’”.
E, acredite, isso é mais violento e radical (porque vai na raiz) do que perguntar “quem
define o que é Arte”.
[1] – PROENÇA FILHO, Domício. A Linguagem Literária. 8.ª ed. rev. São
Paulo: Ática, 2007.