sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Tudo na Arte é Subjetivo?



“Gosto é que nem cu” – já dizia meu pai – “cada um tem o seu”. Será? Cada um é dono do seu mesmo? Outra vez minha mãe me pediu a opinião sobre um texto do Rubem Alves que ela leria na reunião do núcleo gestor lá da escola onde trabalha. O texto falava sobre a felicidade e a alegria de se ensinar. Disse-lhe que achava o texto muito piegas e ela me respondeu que Felicidade é uma coisa subjetiva. Pobre de Aristóteles, então, que dedicou boas linhas de sua Ética a Nicômaco para tratar da Felicidade (eudaimonia). Não de sua felicidade, como sujeito, mas d’A Felicidade. Apesar dos benefícios que isto provoca, nós modernos estamos condenados ao cogito cartesiano. Estamos condenados a, no mais, incorrer àquilo que para Kant, no seu Curso de Lógica, é o pior de todos os equívocos: tratar uma questão subjetiva como objetiva. E assim, quando percebemos o desastre lógico disso, soltamos um “ei, mas isso é o meu gosto, a minha opinião, minha visão. Não dá pra discutir isso”.
Pel’amor! quantas discussões boas a gente não deixa de ter quando trata as coisas dessa maneira?!
Não se pode negar, entretanto, que é o nosso gosto que nos move a escolher tal ou tal música para ouvir, a escolher aquele e esse filme para assistir, em detrimento de tantos outros filmes e músicas que poderíamos ter escolhido. Isso faz parte da própria forma como nos acostumamos, de uns tempos pra cá, a agir no mundo. A internet facilita muito isso. Não preciso mais esperar que o filme ou a novela que passa na televisão me agrade, não fico mais restrito ao acervo da locadora do meu bairro, nem àqueles CDs que meu salário me permite comprar nem aos que a loja de discos me disponibiliza. Posso escolher na internet (e, a posteriori, de graça!) aquele material que diz mais respeito a mim, que me permite trabalhar melhor a minha subjetividade.
Entretanto, eu entendo que a apreciação da Arte é subjetiva somente no que diz respeito à sua recepção. Agora, a obra de arte em si (o quadro, a escultura, a música, o livro) e a estrutura de signos que a subjaz são completamente objetivas. Isso é o que permitiu a Domício Proença Filho a chamar o texto literário de objeto estético [1]. Daqui a pouco explico o que quis dizer com recepção.
Não podemos negar também que, concretamente, quando sofro uma catarse, sou eu que sofro, são os meus sentidos e minha inteligência que são provocados, e não O Gosto, ou A Arte ou O Belo que, à moda de uma entidade supranatural, descem de sua morada celeste para me dar um abraço e verter minhas lágrimas ou gargalhar comigo. Mas, não seria o caso de pensarmos também que aquela obra de arte que me comoveu assim o fez porque está de tal modo estruturada que, quando percebida, toca aquilo que há de comum entre o eu e o nós? Ou pior! que naquela obra de arte que tanto me comoveu pode não haver nada de geral e comum, e pode muito bem ser que ela não comova mais ninguém porque ela é ruim demais para fazer isso?
Ora, mas isso faz de mim uma pessoa de mau-gosto estético? Certamente não. Ninguém é chamado de alcoólatra só porque resolveu tomar algumas taças de vinho no ano novo, assim como ninguém irá passar a ter mau-gosto só porque chorou ouvindo Waldick Soriano enquanto se embriagava. Por outro lado, se comover com uma obra de arte de péssima qualidade faz de mim uma pessoa burra ou sem inteligência instrumental, como já vi muita gente dizer? Pior! Definitivamente não!
Primeiramente porque, para ser apreciada, a obra de arte passa, antes de tudo, pelos sentidos, e aqui vem a questão da recepção da obra, da qual falei acima. Sentidos aqui tomados numa dupla acepção. Tanto na sua significação fisiológica (o sentido da visão, da audição), sendo portanto sensação, como no significado cognitivo do termo, sendo sentido propriamente dito. Nessa última significação, não se leva em conta noções puramente empíricas ou cientificistas, mas antes metafísicas. Diz respeito a uma certa sensibilidade intelectual, que não abarca aspectos simplesmente lógicos da inteligência, mas intuitivos. Assim, como dito antes, para a obra de arte ser apreciada ela deve passar primeiramente pelos sentidos. Para sermos provocados por um quadro de Dali ou por um desenho do Batman, é necessário que eles se apresentem à nossa visão. Para sermos provocados por uma tocada de Bach ou por uma canção do Thiaguinho – ex-Exaltasamba – as músicas nos devem ser dadas na audição. Ora, para ver e ouvir não é necessário um denso esforço da inteligência, se a entendemos como a agilidade de raciocínio e a capacidade de pensar de forma lógica e formal. Para ver e ouvir, basta ter olhos e ouvidos. E só. Portanto, num primeiro momento, bom gosto estético não é sinal de inteligência, se tomarmos esse termo naquele sentido estrito, mas pode, certamente, ser sinal de sensibilidade intelectual.
O segundo motivo pelo qual o bom gosto estético não é sinal de inteligência diz muito respeito ao primeiro. Entendemos que, para nos provocar, uma obra de arte deve passar primeiro pelos sentidos, depois pela sensibilidade intelectual e apenas ocasionalmente pela razão instrumental. Para ter uma boa apreciação de toda A Arte da Fuga de Bach eu não preciso ter noções de contraponto, basta receber a execução da música pelos sentidos e intuir com minha sensibilidade sua ordem melódica. Entretanto, ter noções de contraponto permitir-me-á ter uma noção mais clara da estrutura daquela obra, tornando possível descobrir nuanças que não captaria puramente com meus sentidos e, assim, tendo descoberto algo de encoberto na obra, provoca-los mais intensamente. Mas reparem como sempre estamos jogando com os sentidos, e não somente com a inteligência.
Saber contraponto e teoria musical é um saber técnico, que envolve a razão instrumental, ou seja, a inteligência no sentido estrito. Agora, saber curtir Bach ou Thiaguinho envolve gosto.
Por último, gostaria de dizer que, se pensarmos de maneira concreta, uma música, um filme, um livro ou uma pintura a óleo são coisas que estão fora de nós que a vemos. Não são, portanto, sujeitos. Para existir como conceito, dessa forma, a Arte precisa utilizar como substrato objetos os quais definamos como “obras de arte”. O problema disso surge justamente quando a gente levanta a seguinte questão: “mas quem ou o que define, afinal, esse mesmo substrato. Quem ou o que define o que é uma ‘obra de arte’”. E, acredite, isso é mais violento e radical (porque vai na raiz) do que perguntar “quem define o que é Arte”.

[1] – PROENÇA FILHO, Domício. A Linguagem Literária. 8.ª ed. rev. São Paulo: Ática, 2007.

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Porque devemos ler Platão no Ensino Médio

     Quando li Nietzsche pela vez primeira e vi, pela boca de comentadores, que esse filósofo teceu duras críticas à metafísica de Platão, resolvi buscar nas fontes o que o velho grego da Alegoria da Caverna havia dito de tão absurdo. Eis que me encontro com uma cópia de "A República" em mãos. Não obstante, a minha primeira leitura desse clássico da filosofia foi um desastre. A cada passagem em que Sócrates discursava apaixonadamente sobre o universo da justiça, da pólis e das formas eu identificava erros que não eram bem erros que eu identificava. Explicando melhor, estava a ler Platão sobre os olhos de Nietzsche de forma quase que forçada. Com esses preconceitos, terminei a última página sem entender de fato o que Platão queria dizer no livro inteiro.

     A Alegoria da Caverna é, deveras, uma das passagens mais reproduzidas d'A República e, pior, mal reproduzida! Não me permitia compreender o que significava realmente o Mundo das Formas e, descontextualizadamente, fazia um juízo de valor sobre cada linha da obra com base na interpretação contextualizada de Nietzsche. Esse é um dos pontos onde muitos erram ao narrar o Mito da Caverna, quando querem entendê-lo somente pelos olhos dos outros.

     Já despido dos preconceitos que as leituras atropeladas de Nietzsche me imputaram, resolvi revisitar Platão. E que maravilha! Experimentei realmente o "maravilhar" filosófico de Platão quando compreendi que há muito mais nesse filósofo do que um grosseiro desprezo ao mundo sensível em detrimento do mundo inteligível. Ora, depois eu descobri que grosseiro mesmo é só querer ficar boiando no sensível.

     Não só n'A República, mas em todos os diálogos platônicos, há uma diversidade de assuntos tratados em um só texto. Podemos aprender, com a ajuda de um bom professor, muito de Lógica em Platão; muito de metafísica, muito de literatura e muito de estética. Ler Platão, no Ensino Médio mesmo, nos ajudaria a entender, também, o que é uma teoria. Ora, quantas vezes ouço a pergunta “para quê me serve tal teoria?”. Platão nos ensina. Se uma árvore na caatinga é diversa e ao mesmo tempo similar a uma árvore no cerrado, deve haver uma árvore ideal, em algum lugar fora do sensível, a qual serve de modelo para todas as árvores. Isso é, portanto, uma Forma (ou Ideia, em uma tradução menos acurada). Teorizar é, então, operar com as Formas através do intelecto. É identificar a Realidade.

     Lendo Platão no Ensino Médio, evitaríamos chegar no primeiro semestre do curso de Engenharia, por exemplo, e perguntarmos enfurecidos "para quê vai me servir essa cadeira de cálculo na prática?". Ora, mas com professores ganhando dez reais a hora/aula, como podemos entender Platão? Melhor, com professores ganhando dez reais a hora/aula, como podemos entender?



sexta-feira, 27 de junho de 2014

Essência aniquilada – O Ser em "Angústia"

      Angústia não é uma das obras mais conhecidas do ficcionista Graciliano Ramos, muito menos é uma das mais apresentadas pelos professores de Ensino Médio a seus alunos de Literatura. Por destoar do estilo característico que fez Graciliano ganhar o epíteto de “uma faca só lâmina” - dado por João Cabral -, podemos, de certa forma, entender o porquê de tão rica obra não ser tão bem apresentada no ensino básico como o é Vidas Secas, por exemplo.

      Enquanto que neste livro, podemos dizer dela “um conjunto de narrativas orgânicas, mas autônomas”, sentimos a presença do estilo tão autoral, tal como a prosa sóbria, pouco adornada de adjetivos e com objetividade de faca-só-lâmina, em Angústia encontramos o inverso. Não se acha nesse texto a linguagem objetiva e semi-referencial típica do autor. Vemo-nos, na verdade, diante de uma narrativa elaborada pela voz subjetiva de Luís da Silva, a qual distorce o cenário dado à própria lente personalíssima que aplica à descrição.

      Angústia, portanto, não pode representar um protótipo de obra graciliânica, uma vez que não apresenta as notas características para tal. Só que o que quero tratar nesses apontamentos não é a relação de Angústia com o conjunto da obra de Graciliano, e sim o que ela pode nos dizer respeito a nós mesmos como gente-no-mundo e como seres. Afinal, muito nos tem a dizer o romance sobre isso.

      A estória é narrada em primeira pessoa por Luís da Silva, herdeiro da decadente aristocracia rural pós-império. O fio narrativo não é linear. A trama primária (macronarrativa) puxa subnarrativas. A primeira esboça a medíocre vida de Luís como funcionário público em Maceió, a segunda, narrada de forma esparsa, transita entre a infância vivida na fazenda decadente da família e sua vida andarilha antes do emprego público. Enquanto a macronarrativa é traçada de forma relativamente linear, as micronarrativas são espalhadas na linha da trama a ponto de formar uma concha de retalhos que embaralha a estória contada (passado – pretérito perfeito) e as estórias lembradas (passado do passado – pretérito mais-que-perfeito). Além disso, as matérias e as cenas narradas são distorcidas pela própria subjetividade do narrador.
 
      O objeto que move a trama principal é Marina: filha dos vizinhos de Luís e mulher pela qual se apaixona. O objeto que move as tramas secundárias é o fracasso, ou (poderíamos dizer?) a falta de essência ao existir-aí de Luís. Ora, um famigerado postulado da filosofia existencialista de Sartre versava justamente isso: A existência precede a essência. Ou seja, nós primeiro existimos e tomamos nota dessa mesma existência para depois nos definirmos e preenchermos o existir com o ser (essên-[cia] : esse-[re] : o radical esse designa ser).
 
     O Ser de Luís depende de tal modo de Marina que, quando se torna impossível a aproximação entre os dois, as micronarrativas sufocam o fio principal da trama com retalhos de cenas. O pathos (paixão) de Luís pelo próprio objeto (Marina) que o compõe a essência, plano no drama, aniquila O Ser e a essência do personagem, deixando-lhe apenas o existir-aí. Afinal, o indivíduo passa a ser aquilo que deseja e ama, o qual não necessariamente possui. Ora, por tomar consciência da impossibilidade de possuir o objeto que elabora sua essência, Luís irrompe um processo gradual de aniquilação do Ser.

* * *

      O romance de Graciliano mostra-nos que não somos apenas o que temos, pensamos e sentimos, mas também o que desejamos. Luís não era o que tinha, pois seus vencimentos mal lho pagavam os cigarros, as bebidas e o aluguel. Luís não era o que pensava, pois só pensava no passado e quando encontrava o presente era para narrar Marina. Luís tampouco era o que sentia, pois além dos sentimentos ordinários da existência, sentia apenas Marina. Luís era, então, o que desejava: a própria Marina.
 
     Podemos ver o quanto isso tem respaldo em nossas vidas, e isso é um dos benefícios que a Literatura presta para a gente: projetar-nos para vermos nós mesmos de forma mais profunda.
      Por fim, somos todos um punhado de Luíses. Somos o que queremos.